
O sol ainda não havia nem nascido e a estação terminal do BRT Santa Cruz já estava superlotada. No início de mais um dia útil de segunda-feira, os passageiros aguardavam, aglomerados, um ônibus articulado da linha 10 que seguia no sentido Barra da Tijuca fazendo o serviço expresso. Por estarmos no meio da pandemia de COVID-19, o acesso à estação estava sendo controlado. Mesmo assim, com a quantidade de pessoas na área de embarque, não era possível haver o mínimo de distanciamento social. Era praticamente um mar de gente, sem dar para ver nenhum espaço entre elas. Do lado de fora, na Rua Felipe Cardoso, aproximadamente mais de 100 pessoas aguardavam, em fila, uma oportunidade de entrar na estação.
No relógio, cinco e cinquenta e seis. Um articulado com destino ao terminal Alvorada, na Barra, encosta na plataforma. As portas de vidro da estação não funcionavam mais – na verdade, nem vidro havia; todos haviam sido quebrados e retirados. Aquele mar de gente se aglomera em cada uma das quatro portas do veículo para disputar um lugar. Elas mal terminaram de se abrir e o empurra-empurra foi geral. Outros forçaram a porta para que abrisse logo. Em menos de dez segundos, todos os bancos já haviam sido ocupados e o corredor do ônibus já estava lotado. Não cabia mais ninguém.
“Todo dia é assim”, comentou o motorista, que tentava, pela terceira vez, fechar as portas. A grande quantidade de pessoas acabou impedindo o fechamento delas, enquanto outras pessoas ainda tentavam entrar no veículo. “A capacidade é de 200 pessoas, mas a gente leva em média 400. E na pandemia foi pior, porque passageiro tinha, mas a frota diminuiu, então as viagens tinham ocupações excessivas”, falou, quando enfim conseguiu fechar a porta.
A plataforma, por sua vez, continuou superlotada. Nem pareceu que tinha acabado de lotar um articulado que estava pronto para sair. Seis em ponto, e o 10 partiu em direção à outra ponta da nossa viagem.

Foto por Yan Marcelo

Bus Rapid Transit, o BRT
O sistema de bus rapid transit (ônibus de trânsito rápido, BRT) do Rio de Janeiro começou a ser operado em 2012, no segundo mandato do prefeito Eduardo Paes. O corredor exclusivo de ônibus que liga 10 bairros entre Santa Cruz e a Barra da Tijuca, todos na Zona Oeste, seria o primeiro dos quatro inicialmente planejados: TransCarioca, inaugurado em 2014 e que liga o Aeroporto do Galeão, na Ilha do Governador, ao Terminal Alvorada, também na Barra da Tijuca; TransOlímpica, funcionando desde 2015 e conectando o Recreio dos Bandeirantes a Deodoro; e TransBrasil, que ligará Deodoro ao Centro da Cidade, inicialmente previsto para ser inaugurado em 2016, para os Jogos Olímpicos, mas ainda está sem previsão de ter suas operações iniciadas.
Planejado para ser operado por um consórcio de empresas de ônibus – muitas das mesmas que já operam linhas regulares no Rio –, o BRT Rio enfrenta problemas desde o início. O próprio consórcio relatou, diversas vezes, em suas redes sociais, dificuldades com o asfalto se degradando ao longo dos percursos – o que obriga os articulados a circularem com velocidade reduzida – e, principalmente, com o chamado “calote”, com uma alta quantidade de passageiros que embarca sem pagar. A expectativa era de conseguir levar 1,5 milhão de passageiros por dia, no planejamento inicial. Hoje, o número de usuários diários é aproximadamente um terço desta previsão, chegando a cerca de 500 mil.
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O ponto de partida do corredor TransOeste é a estação terminal de Santa Cruz. Próximo a ela, a também terminal estação de trem da SuperVia faz a integração com as composições que irão no sentido Central do Brasil. No BRT, partem os ônibus articulados da linha 10, expresso, com destino ao terminal Alvorada, na Barra da Tijuca. Nos horários de pico, para tentar desafogar a estação, partem ônibus diretos, que não fazem paradas até chegar à Barra. Durante as madrugadas, a linha 10 circula como parador, aumentando de 14 para 35 a quantidade de paradas do trajeto.
Santa Cruz é o último bairro da Zona Oeste. Tem um dos índices de desenvolvimento humano mais baixo do Rio, de 0,742, por dados de 2000. Com uma área de aproximadamente 12.500 campos de futebol - cerca de 10% da cidade do Rio de Janeiro - e população de 217 mil habitantes, pelo censo de 2010, tem 63% das pessoas na faixa entre 15 e 64 anos. Assim, é um dos bairros mais populosos e com maior população adulta, sendo portanto uma região densa do município.

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Como ocorreu com as inaugurações dos outros dois corredores, com a do Transoeste, diversas linhas de ônibus regulares tiveram seus trajetos alterados, encurtados ou até extintos, para que não concorressem com o trajeto exclusivo de BRT, sobrepondo-o. Algumas passaram a servir como alimentadoras do sistema, porém, outras simplesmente pararam de operar.
As linhas 867 (Vila Kennedy x Alvorada), 877 (Campo Grande x Alvorada) e 882 (Santa Cruz x Alvorada) são alguns casos das que sumiram. Enquanto o ônibus encostava na estação Pingo D’água – que, assim como o terminal Santa Cruz, também estava lotada – o motorista relembrava a época que o trajeto entre as duas pontas da Zona Oeste era mais complicado.
“Eu trabalhei no antigo 882. Passar pela serra (trecho em que a Avenida das Américas contorna o Maciço da Pedra Branca para fazer a ligação entre Barra de Guaratiba e Recreio) era complicado. O BRT veio como uma solução. O transporte é bom, mas a falta de investimento é algo que prejudica. A solução, eu acho, seria uma nova administração, melhorar o asfalto e aumentar a frota”, comentou.
A grande diferença citada pelo motorista foi o Túnel Vice-Presidente José Alencar, que passa por baixo do trajeto elevado da Avenida das Américas. O objetivo foi reduzir o trajeto de viagem em até uma hora, visto que o túnel tem 1km de extensão e seu percurso é feito em menos de um minuto.
Ao encostar na plataforma da Estação Pingo D'água, o ônibus, já superlotado, continuava a receber passageiros. Pelo menos, muitos tentavam embarcar, mesmo sendo difícil caber mais pessoas. Nessa altura, com o sol já tendo nascido, a temperatura começava a subir dentro do veículo e o ar condicionado não dava vazão.
"A falta de investimento causa esse sucateamento. Cada garagem tem cerca de 50 carros sucateados. Mas também os passageiros têm sua parcela de culpa", completou o motorista, mais uma vez tentando fechar as portas para seguir viagem.
Clients &
Collaborations

Cosme Lucas, de 51 anos, compartilha sua experiência com o BRT.
Seu ricardo de santa cruz
Ao sair de casa às três e quinze na segunda-feira com destino a Barra da Tijuca, o seu Ricardo, morador de Santa Cruz, tem uma preferência comum em relação aos horários dos ônibus e principalmente da quantidade de gente que vai dividir o transporte com ele. Com seu casaco preto, calça e mochila, o padeiro leva tudo o que acredita ser necessário para seu dia, que ainda nem apresenta luminosidade no céu.
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Às três e vinte da madrugada, a caminho da estação do BRT para seguir adiante para a estação General Olímpio, em Santa Cruz, Ricardo comenta sobre como antes da pandemia, mesmo na parte da madrugada, os ônibus costumavam também estar cheios, mas por conta de tudo isto e dos decretos sanitários, a situação abrandou. “Pegar menos aglomeração, não é?”, o passageiro responde de imediato: “Com certeza!”. Há uma consciência geral de que o vírus pelo menos está aí. E pode estar bem mais presente num ambiente público, como o transporte, claro. Ricardo enxerga dessa forma.
Enquanto ele descansa recostado de máscara no banco, o ônibus vai passando pelas plataformas seguintes pegando outros mais passageiros com destino para as bandas barrenses. Até a General Olímpio, encontrava-se lugares vazios ainda e quem havia entrado ainda podia se tranquilizar com o espaço. Poucos ocupantes, vários lugares, distância requerida presente em excesso. Trajetos que antes demoravam por volta de uns trinta, trinta e cinco minutos, com (e somente) a capacidade correta de passageiros, hoje têm sido de uns vinte. O decreto é “seguido” por algum tempo. Cerca de dez minutos depois, já não se encontram mais lugares vagos e todos que entram ficam em pé, alguns já sem máscara. “Próxima estação, Mato Alto”, diria o sistema de som do transporte se funcionasse como no início de seu funcionamento. Cena curiosa, somente duas pessoas embarcaram para Alvorada. Até que se chega ao destino.
— “Você já tá nessa rotina há quanto tempo, seu Ricardo?”
 — “Ah, cara, nesse horário aí… uns dois anos.”
 — “É meio exaustivo, né?”
 — “É que a gente acostuma né. Acostuma porque é o hábito diário. Antigamente, eu pegava às seis horas, aí saía de casa um pouco mais tarde, quatro horas para pegar o de quatro e vinte, quatro e meia se o horário (do compromisso) for às cinco. É melhor porque você acaba tendo um pouco mais de tempo pra fazer as coisas, né, dá uma caminhada”, diz.
Do lado de lá, há uma grande mudança de panorama. Para quem utiliza o sistema do BRT e esteja em qualquer lugar da cidade do Rio de Janeiro que não seja parte do ramal Santa Cruz, Madureira e adjacências. Durante o percurso que faz até sair da estação para continuar sua caminhada até o trabalho, o senhor de 58 anos comenta ainda sobre as diferenças de cada lado apontando algumas questões.
— “Você vê o brt como um transporte que reflete muito essa desigualdade social entre as pontas do trajeto?”
Em certo momento, quando se desce na Alvorada sentido Barra da Tijuca, você deve ziguezaguear pelo terminal a fim de ou sair do terminal em direção às pistas ou esperar mais algum tempo pelo próximo ônibus que virá. Quem sabe ele já está ali esperando pelas mais quantas dezenas de pessoas que transportará. Entre as grades os passageiros ficam. Não há tantos assim, o que mudará bruscamente daqui umas horas à frente, garante o senhor. “A procura é grande, são milhares que trabalham, aí por mais que a gente tenha feito uma viagem tranquila (às três horas), por exemplo, lá de Santa Cruz pra cá (Alvorada) agora já tá mais complicado”.
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Conforme o destino de Ricardo ia se aproximando, os passos iam desacelerando conforme as palavras que ele dizia saíam da boca e paravam no abafamento de sua máscara. Contou sobre mais algumas necessidades de sua região, constatou a falha dos sistemas bases da sociedade nacional e também se acomodou, afinal de contas, há certas coisas que não há como lutar contra. “Falta um pouco mais de organização realmente no sistema de transporte, né? Assim como em todas as outras áreas, que estão nessa situação. O que funciona bem? Qual área funciona bem? Então tudo isso também reflete, e isso já é de muito tempo”. Apesar do tom meio soturno da conversa, ele alerta sobre uma nova alternativa que surgiu durante a pandemia para conter um pouco os atrasos de mobilidade da região de Santa Cruz e desafogar um pouco a quantidade de passageiros. Uma nova linha direta de ônibus comum que, segundo ele, tem facilitado bastante as coisas por lá, mesmo o problema maior ainda sendo enorme. “Começa a partir de quatro horas, parece, que ele vem direto e das 16h da tarde é de Alvorada para Santa Cruz. Aí já dá pra equilibrar um pouco, mas pra falar a verdade, continua difícil. Para quem pega em determinado horário e depende, é brabo.”
Um dos grandes problemas da locomoção urbana da cidade do Rio de Janeiro é a ausência de opções de transportes. Ou é o trem ou os ônibus ou o metrô. De resto, as vans, moto-táxis e kombis por aí a fora. Impossibilitados ou pela falta de acesso, por determinadas linhas ou serviços não estarem em determinadas regiões, ou também pelo preço das passagens, muitos transeuntes acabam optando pela melhor forma de chegar ao destino que se têm. Calotes e lotadas viram alternativas, essas rechaçadas pela agência pública por quaisquer infrações que sejam (desde falta de fiscalização, excesso de pessoas por assento, etc). Tudo isso refletido numa das falas de Ricardo antes de nos despedirmos: “Mas não tem outra alternativa né? Tem que vir!”. E ele foi. No relógio os ponteiros marcam quatro e cinquenta e três da manhã.
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 —  “Em termos né, cara, porque realmente você vê a aglomeração que têm nos ônibus (do ramal Santa Cruz), também não é suficiente para atender a demanda do passageiro. São muitas pessoas que moram lá que trabalham aqui na Barra ou então fazem uma transição para a Zona Sul e tal. Então, como a população de Santa Cruz é numerosa, não só de lá, ainda tem Guaratiba que ele passa também, o pessoal lá da Pedra que pega, fica muito tumultuado, certo horário do pico então… Mais tarde, daqui a pouco fica complicado”, ressaltou ainda antes de ponderar sobre a praticidade do sistema, mesmo que em mal funcionamento  —  “É um transporte bem prático, se for bem administrado, bem organizado, atende, mas não atende a demanda dependendo do horário, que têm muitos passageiros”.
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